12
Jun
08

SuperMedia: Entrevista com Charlie Beckett


“Este livro é o meu manifesto para os media como jornalista e também como cidadão do mundo. Como jornalistas estamos sempre a ouvir dizer como os meios de comunicação têm um poder enorme para moldar a sociedade e acontecimentos, para mudar vidas e a história. Então porque é que a nossa sociedade é tão descuidada em relação ao futuro do jornalismo?” [1]

Saving JournalismEsta é a apresentação que Charlie Beckett faz do seu livro “SuperMedia: Saving Journalism So It Can Save The World (Wiley-Blackwell, 2008 ), onde questiona os principais desafios colocados à prática jornalística nos nossos dias, e a sua influência na manutenção de sociedades democráticas e livres.

Charlie Beckett é jornalista, com 20 anos de carreira na BBC e na ITN, e é também Director do POLIS, um think tank sobre o jornalismo e sociedade na London School of Economics. “SuperMedia” é uma obra que vem compilar e estruturar várias linhas de pensamento sobre o futuro do Jornalismo, mas onde Charlie Beckett apresenta a sua ideia de jornalismo como um serviço essencial às sociedades contemporâneas, e como as mudanças na indústria de informação, para além de inevitáveis, são necessárias.

Coloquei algumas questões a Charlie Beckett sobre o seu livro, e com a ajuda de alguns excertos, vamos tentar perceber porque é tão importante salvar o jornalismo.

_______________________________

“Estimo que tenhamos cinco anos – talvez dez – para salvar o jornalismo para que o jornalismo possa salvar o mundo.”

Porque é que o Jornalismo está em perigo? Para Beckett, as causas são uma “mistura de pressões económicas, repressão política ([em] sítios como África, Rússia etc) e a atenção do público a alternativas em novos média”.

Os media tradicionais mantiveram inalterada a sua relação com o público nas últimas décadas, o que parecia resultar bastante bem, mas com o advento das novas tecnologias essa relação alterou-se, e a indústria das notícias parece estar a ter algumas dificuldades a adaptar-se às novas circunstâncias. Coloquei a Charlie Beckett uma questão que ele mesmo levantou no seu livro: “O que é que se passa de errado com o negócio dos média?” “É demasiado formalista, demasiado fechado, demasiado limitado.” De facto, as dificuldades e os receios aumentam no seio da indústria das “árvores mortas”: redução nos lucros, nas tiragens, no pessoal, e a dificuldade de muitos profissionais em abraçarem as novas formas de comunicação. Apesar de tudo, a função do jornalismo mantém-se: informar. E a circulação de informação em liberdade permite um maior conhecimento da realidade que nos rodeia, e a interagir mais eficazmente com ela. Mas durante muito tempo, o jornalismo assumiu um papel de mensageiro ao qual não se pediam contas.

E qual é esse papel hoje em dia? “O Jornalismo tem muitos papéis: é entretenimento, vigilante, informador, fórum, mediador económico e mais. As sociedades com meios de comunicação abertos e prósperos parecem ser mais ricas e melhor ajustadas”.

No cerne do processo noticioso estão os jornalistas, uma classe mal vista pela maioria dos cidadãos. Sob uma perspectiva tão pessimista em relação ao papel que eles desempenham, perguntei se os jornalistas se tinham esquecido das suas responsabilidades: “Claro que não”, diz Beckett, “mas a prioridade do jornalista é fazer o seu trabalho em condições. Os jornalistas e as suas organizações devem considerar responsabilidades mais vastas, mas cada um vai defini-las de forma diferente. O Networked Jornalism permite ao público colaborar nessa definição e então partilhar as responsabilidades”.

Networked Jornalism – Jornalismo Interligado

O conceito apresentado por Charlie Beckett no seu livro é o de Networked Journalism, que se poderá traduzir por Jornalismo Interligado. Como ele explicou na BBC “ Os Networked Journalists partilham o processo noticioso com o público logo desde o início: da recolha de informação à sua distribuição, de forma activa, participativa.”[2]

Em poucas palavras, Beckett descreveu-mo como uma “mudança profunda na prática jornalística que desafia as noções básicas do jornalismo tradicional. Sintetiza as funções de edição, reportagem e apresentação com muito maior envolvimento do público ao longo do processo.”

Desde que tenha acesso a um computador ou um telemóvel, qualquer elemento do público pode colaborar com os jornalistas através do jornalismo do cidadão, wikis, blogs, e contribuir com conteúdos multimédia. Ou então, apenas recostar-se e apreciar os resultados desta colaboração. Isto implica novas perspectivas sobre a agenda noticiosa, e o seu alargamento, que aumenta com cada pessoa que participa. Esta sinergia pode recuperar a confiança pública no Jornalismo, e um aumento no conhecimento dos meios de comunicação sobre os seus públicos: “As pessoas estão cada vez mais cépticas [em relação ao Jornalismo] mas isso pode ser uma coisa positiva. Os Velhos Media não levavam o seu público a sério porque nunca foram ao seu encontro”. Mas a participação de amadores no processo jornalístico levantou a questão da qualidade dos conteúdos. Para Charlie Beckett esta questão não se aplica: “Existe muita porcaria nos media corporativos.”

Outro dos assuntos mais discutidos é como os Novos media podem gerar receitas: “É uma pergunta demasiado difícil! Se soubesse a resposta estaria muito rico.”

Temos assistido a exemplos práticos desta evolução: a rapidez como o terramoto de Sichuan foi reportado na net, a democratização de conteúdos multimédia, o desenvolvimento de redes sociais e comunidades virtuais, etc. Mas mais do que uma evolução tecnológica, o Networked Journalism é uma filosofia: “(…)é o regresso a algumas das mais velhas virtudes do jornalismo: pôr a redacção em contacto com o mundo; ouvir as pessoas; dar uma voz às pessoas nos media; entrar em diálogo com o público. Mas tem o potencial de ir mais longe do que isso na transformação da relação de poder entre os media e o público, e na reformulação os meios de produção jornalística”.[3]

Esta multiplicação de formas de comunicação implica que haja muito mais informação do que anteriormente, onde cada indivíduo se pode expressar seguindo a sua própria agenda. Disse a Charlie Beckett que a paisagem dos media parece um espelho partido, com diferentes plataformas em media diferentes, para públicos fragmentados usando diversas aplicações. “O que está errado com diversidade e diferença e distância? Geralmente uma maior participação pública promove uma maior expressão e mais conectividade.” Entre as pessoas, e entre os públicos e os meios de comunicação. Serão os novos órgãos de comunicação interligados os pólos agregadores de comunidades? “Sim – mas também poderão estar à margem ou fora das comunidades. O Networked Journalism funciona naturalmente melhor quando apoiado por grupos de pessoas, mas essas comunidades podem não ser geográficas.” A geografia que nos aproxima agora é a dos conceitos, dos gostos, das ideias.

No seu livro, Beckett descreve longamente como os media interligados podem influenciar a consciência política dos cidadãos e dos media principais quando alertam para assuntos que normalmente ficariam escondidos debaixo da pilha noticiosa, que enche as redacções diariamente. O Networked Journalism permite uma reformulação da agenda informativa, abrindo espaço para notícias que são importantes para pequenas comunidades, ou para a sociedade em geral, mas das quais está alheada por não ter informação suficiente. O exemplo maior que Beckett usa é o continente africano: como é que sociedades com poucos recursos económicos, défices educacionais e democráticos, e uma baixa taxa de penetração de novas tecnologias pode beneficiar com o Networked Journalism? África não tem uma cobertura de Internet desenvolvida mas na maioria dos países há estruturas que permitem uma boa cobertura celular. A participação de vozes independentes na construção de uma imagem informativa de África, gerada longe das pressões governamentais, dá-nos de certeza perspectivas mais esclarecedoras do que a que nos é fornecida pelos media do aparelho de estado, ou por correspondentes que não podem chegar a todo o lado. Com a facilidade de disseminação de informação através de aparelhos móveis, África pode se tornar no perfeito campo de testes para o Networked Jornalism. “Não é o campo de testes perfeito. Eu digo que é o teste final, porque tantas vezes os velhos media falharam em África, que o Networked Journalism oferece uma nova oportunidade que pode ser baseada na própria experiência e capacidade africanas.”

Mas será este um caminho sem riscos? O poder do Networked Journalism é o de influenciar as vidas das pessoas comuns, mas haverá perigos nesta forma de fazer as coisas? “E quem são as pessoas ‘comuns’? Eu honestamente não vejo perigos reais nas tendências dos novos media que não sejam comuns aos perigos postos pelos velhos media. As pessoas vão continuar a ser desonestas, parciais e gananciosas tanto online como offline, eu não penso que os novos media apresentem quaisquer novas ameaças comparados com os velhos media.”

Os Hiper Jornalistas

Há vantagens claras em abraçar os Novos Media: são baratos, rápidos, mais eficazes, e o seu potencial é quase infinito. No entanto, existe ainda muita desconfiança. “As pessoas resistem sempre à mudança. Os Novos Media implicam aprender truques novos. Alguns postos de trabalho vão desaparecer. E como desafiam os conceitos do velho Jornalismo, algumas pessoas acham-nos ameaçadores.”

E que procedimentos padrão deverão ter os novos jornalistas no seu dia a dia? “NÃO deverão haver procedimentos padrão. Isso é uma ideia antiquada.” No seu livro, Beckett defende que a versatilidade e capacidade de adaptação do jornalistas são as características mais importantes dos profissionais da comunicação do futuro, não só às novas tecnologias e características do mercado, mas também na sua relação com os utilizadores. Os jornalistas do futuro devem saber utilizar as redes sociais em seu favor, criar e distribuir as notícias em vários formatos, e saber gerir as contribuições dos utilizadores antes, durante e depois da publicação da informação.

Para Beckett, o “jornalismo gosta de pensar que é um super-herói quando na realidade é o Clark Kent”[4]. Os super poderes do jornalista encontram-se na sua capacidade de colaborar com o público, mas isto não significa que o papel dos jornalistas se tornará mais precário: “O jornalista continua a ser necessário, porque precisamos de filtros, editores e apresentadores, mas eles vão ter também que se tornar facilitadores, conectores, possibilitadores. É um trabalho ainda mais complexo e interessante, e igualmente vital.” Este aumento na complexidade da prática jornalística torna o jornalismo mais fiável, melhor? Beckett pensa que “será tão fiável como as pessoas que o fazem. ‘Melhor’ é uma palavra muito subjectiva. Mas sim, acredito que a participação do público eleva os padrões por aumentar os recursos.”

A própria formação dos Hiper-Jornalistas para a realidade dos SuperMedia deverá ser “mais multi-especializada e mais dirigida para a resolução de problemas, para promover a arte de envolvimento criativo com o público, em vez de passar meses a copiar os jornalistas do passado.”

Só que a relação dos jornalistas com elementos estranhos às redacções não tem sido fácil. Beckett debruçou-se extensivamente sobre a relação dos jornalistas com outra classe emergente, os bloggers, que parecem viver fora das regras impostas aos jornalistas, e que rapidamente se impuseram como distribuidores de informação. Terão os bloggers hoje em dia tantas responsabilidades como os jornalistas, e deverão eles ter o seu próprio código de conduta? Ou será a qualidade do seu trabalho a verdadeira reguladora dessa actividade? Beckett acha que os bloggers não precisam de um código ético: “A maioria dos jornalistas ignoram quaisquer códigos que possam ter. A garantia de qualidade ou fiabilidade assenta na diversidade, na responsabilidade, e isso vem com o Networked Journalism.”

Aliás, todos nós podemos ser jornalistas. Para Beckett, jornalistas são “pessoas que informam, analisam, comentam eventos ou assuntos para outras pessoas consumirem.” E é nos cruzamentos destas relações que se cria a SuperMedia.

O Desafio SuperMedia

“Supermedia” é ela mesma uma obra interligada. Charlie Beckett recorreu às ideias de Paul Bradshaw, Jeff Jarvis, Jay Rosen e outros pensadores dos novos media – para além de referir personagens que activamente afectaram essa realidade – para fundamentar e desenvolver os seus próprios conceitos.

O que sobressai é uma perspectiva optimista (pelo menos é o que me parece, apesar do pressuposto tenebroso sob o qual se apresenta), e fornece indicações práticas sobre como se podem e devem desenvolver os meios de comunicação, desde os corporativos aos pessoais. É uma obra fundamental numa época de transição e definição do que é o jornalismo, para que serve e para quem serve. Enriquecido com a perspectiva do autor sobre a importância social dos media, é o resumo perfeito de várias correntes de pensamento sobre quais caminhos a indústria e o público poderão seguir no futuro. Não é um livro complexo nos conceitos, mas nas suas implicações, e creio que se tornará num excelente guia para profissionais e estudantes de comunicação, para a compreensão de como se passa da uma comunicação de sentido único, corporativa e limitada, para uma outra, relacional, personalizada, comunitária. E as questões que levanta não terão necessariamente uma só resposta.

Acima de tudo, Beckett defende que a notícia é um serviço, não um produto, logo o interesse público está acima de todos os outros. É uma estranha forma de liberalização de algo que precisa de ser de todos e que deverá servir o bem comum.

Como ele diz no livro, “o jornalismo pode ser uma força maior para o Bem”. Perguntei-lhe se essa “missão, caso a aceitemos”, é possível: “Claro que tudo é possível. Mas é uma escolha. Nós temos os media que criamos.”

Podem comprar SuperMedia: Saving Journalism So It Can Save The World aqui, ou fazer o download dos três primeiros capítulos no site do POLIS.


[1] Beckett, SuperMedia: Saving Journalism So It Can Save The World (Wiley-Blackwell, 2008 )

[2] em entrevista ao programa de rádio Night Waves da BBC3, 2 de Junho 2008


8 Respostas to “SuperMedia: Entrevista com Charlie Beckett”


  1. 12 de Junho de 2008 às 5:29 pm

    Hi Alex, do you have an english version of this post I can read? I’ve been reading the same book but haven’t had time to finish it yet.

    Thanks,
    Azeem.

  2. 12 de Junho de 2008 às 5:34 pm

    Hi Azeem, i’m working on the translation as we speak, then i’ll send it to OJB to see if Paul is interested in publishing it. Anyway, it will be available this weekend. 😉

  3. 3 twentysth
    17 de Junho de 2008 às 12:43 pm

    tenho muita curiosidade em relação ao livro mas ainda não tive oportunidade de lê-lo.

    excelente entrevista – veio aguçar a minha curiosidade. 🙂

  4. 17 de Junho de 2008 às 4:23 pm

    Obrigado Vera, mas para te dizer a verdade nem estou muito satisfeito com o resultado final, tive alguns problemas e cometi alguns erros na fase da entrevista, que tentei remendar, mas penso que dá pelo menos para aguçar a curiosidade. Eu gostei muito do livro e é daqueles que acho de leitura obrigatória. Boas aventuras na terra dos kiwis 😉

  5. 5 Sofia
    12 de Maio de 2009 às 6:10 pm

    Gostei muito da entrevista. Muito informativa e esclarecedora. Apresentou perspectivas sobre o webjornalismo que nunca me tinham passado pela cabeça e ideias que não estavam sufucientemente concretizadas na minha mente.
    Penso que o networkedjournalism pode ser o meio através do qual o público vai reconhecer a importância da profissão jornalista e do jornalismo, mas também do seu poder de intervenção como cidadão.

    Venham mais posts interessantes!


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