Esta é uma daquelas coisas que tenho que fazer de vez em quando, para experimentar e manter a prática. É uma pequena – mais ou menos – reportagem sobre um evento que decorreu no dia 24 de Abril, que filmei com um Samsung Omnia, a princípio sem grandes procupações jornalísticas, mas depois o bicho tomou conta da ocorrência e entrei em piloto automático. Podia ter saído mais bem feito, com mais alguns cuidados, mas a ideia está lá. Fotos, texto e vídeo da minha autoria. Agradeço comentários, críticas e sugestões.
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A cadeira em chamas
24
Está uma noite fria, mas em S.João do Vale, um pequeno largo no coração da parte velha da Figueira da Foz, começa-se a sentir uma agitação pouco normal para aquela hora.
Há música que se espalha pelas ruas estreitas, mas não é a mesma que se costuma ouvir durante as festas populares que se ali fazem todos os anos. São canções de um tempo diferente, que falam de liberdade nas entrelinhas. No meio do largo, os membros de uma associação cultural local colocaram uma mesa com um projector e um pequeno sistema de som, e vão olhando para o relógio. O evento começa às 11 da noite e tudo tem que estar preparado até lá.
Uma pequena multidão vai-se juntando, muitos jovens, fumam-se cigarros para se enfrentar a espera e o frio. Das janelas, os moradores vão espreitando, a tentar perceber o que se passa. Ouve-se o barulho de estores, uma ou outra cara atrás de uma cortina, mas ninguém sai de suas casas. Preferem alhear-se do que se passa à sua porta, alguns sabem do que se trata, outros talvez não, e de certeza que há quem se incomode com o barulho. Mas para quem está cá em baixo isso não importa, há pormenores a resolver. No chão está um boneco, no fundo são roupas velhas recheadas com palha, com um chapéu a segurar o conjunto. De pé, no meio de um campo, seria um espantalho. Ali é um símbolo. A fazer de cara, está uma fotocópia da imagem do homem que governou Portugal durante 50 anos.
É preciso que chegue uma cadeira para sentar a personagem. Quando a trazem, fazem-se piadas e avisos para que não caia dela abaixo antes de tempo. Mas o boneco segura-se bem, e torna-se o centro das atenções. A hora marcada aproxima-se, uma hora que é de há 35 anos, a hora do fim, que é também a de antes de tudo começar.
Há mais pessoas, algumas conhecidas da vida política local, nenhum representante da autarquia. É um acontecimento cívico, uma celebração, mas parece não atrair atenção suficiente para se capitalizar uma foto no jornal a poucos meses das eleições. Que, por acaso, acontecem por causa do que se está a celebrar.
Chegou o momento. Pedro Saboga, um dos membros da organização, explica aos presentes a razão de estarem ali:
“Vamos fazer a queima simbólica do fascismo. Convido toda a gente a participar. Quem quiser, tenho aqui muitos fósforos para ajudarmos todos a queimar o fascismo.”
O Salazar de palha permanece imóvel e sereno a estas palavras. Nem uma ponta de perturbação, mesmo estando regado com combustível, nem uma sombra de preocupação quando se começam a distribuir e a acender fósforos em seu redor. Irá cumprir o seu papel de efígie, que é o de personificar algo e cumprir fisicamente o acto simbólico a que são sujeitadas.
O recheio do boneco arde rápido, mas as roupas custam a pegar fogo, o que lhe mantém a compostura. Em volta, as pessoas observam as chamas que crescem rapidamente, enquanto que em fundo se ouve “E Depois do Adeus”. Numa das paredes do largo são projectadas imagens do próprio dia da Revolução, no preto e branco que a geração de muitos dos presentes nunca chegou a conhecer. Os mais velhos mantém o silêncio enquanto o fogo vai destruindo o que sobra do boneco, que se desfaz em poucos minutos, num curto mas intenso exorcismo. Apenas uma pequena chama se mantém no assento da cadeira, que, apesar da violência das chamas, não se desfez. E provavelmente, é isso que acontece sempre em todas as revoluções.
Acabada a projecção da memória desse dia em Abril, desmonta-se rapidamente todo o equipamento. Limpam-se as cinzas, e convida-se toda a gente a dirigir-se duas ruas ao lado, para assistirem na sede da associação a um pequeno documentário de produção própria.
O largo esvazia-se, e é entregue ao seu silêncio habitual. As pessoas por detrás das janelas já podem dormir descansadas.
25
Já passa da meia noite quando começa o filme. Na sala cabem todos à justa, mas cabem. O documentário é o cruzamento de entrevistas a alunos de liceu sobre o que sabem da Revolução do Cravos, sobre Salazar, a PIDE e a Guerra Colonial, com os relatos de quem viveu tudo isso.
O que se ouve dizer mais da boca dos miúdos é”não sei”, “dei isso nas aulas, mas não me lembro”, intercaladas por algumas confusões históricas. Finalmente alguém consegue dar uma explicação com pés e cabeça sobre essa altura da vida portuguesa, mas o sotaque é do Nordeste do Brasil…
No ecrã surge um miúdo de cara redonda, bem arrumado dentro de uma camisola azul clara e que diz coisas como: “Há demasiada liberdade, fumam, fazem o que querem”, e “eu mandava pôr uma regra em que todos os alunos ou se portavam bem ou iam para uma escola que os obrigasse a portarem-se bem, a dar estaladas e, assim (levanta a mão), a bater”.Não deve ter mais de 12 anos,e fala à sua sua escala – a vida escolar – e só se pode imaginar onde é que ele foi buscar essas ideias. Mas do que ele fala é de impôr uma ordem ao mundo que conhece.
Muda-se o cenário para uma feira, onde um grupo de ex-combatentes conta o que viveu na guerra em África. É algo que por mais que nos expliquem, só quem lá esteve é que pode compreender por inteiro o horror que foi. Quando se fala do estado actual das coisas, o tom é de desilusão. “Se calhar é preciso fazer outro 25 de Abril”, mas não têm bem a certeza de quem o poderia fazer. “Temos o que merecemos”. Mas percebe-se que o que eles querem dizer realmente é que, depois de tudo, merecíamos mais.
Os miúdos voltam e tentam explicar o que é a Liberdade. “É poder dizer aquilo que se quer.” Por isso é que qualquer artigo que se escreva sobre o 25 de Abril será tendencioso, apenas pelo simples facto de poder ser escrito. Mas nota-se o vazio nas declarações, é como tentar definir a sede se nunca nos faltou a água, e nem se pode dizer que tenham culpa, a torneira sempre esteve aberta para eles.
Outro entrevistado, conta como era a actividade de resistência ao regime na Figueira da Foz, no envolvimento dos jovens nas escolas, e como no dia da Revolução a festa foi feita principalmente por eles, como tinham noção que aquele dia era especialmente seu. E diz ainda que os jovens de hoje em breve se irão chegar à frente e operar uma tão necessária mudança. Mas no enquadramento dado pelo documentário, as dúvidas são grandes.
O filme acaba, e fica algum desconforto, especialmente entre os que viveram esses dias. A falta de conhecimentos das novas gerações sobre este passado já não tão recente é confrangedora. Eles sabem que, sem a memória, os erros repetem-se, e nenhum deles quer voltar a viver no medo de uma ditadura, por mais diferente que ela seja da que conheceram.
À medida que as pessoas vão saindo e comentando o que viram, percebe-se que ainda muito ficou por fazer depois da Revolução. 35 anos depois, parece que houve mais retrocessos que avanços, mas estão satisfeitas pelo facto de haver ainda quem se lembre e se preocupe em fazer lembrar os outros. Pouco a pouco, voltam para casa, em direcção ao feriado.
No final de tudo, não sei o que é que foi feito da cadeira, nem em que estado realmente ficou depois do fogo.
Nota: o Tubo d’Ensaio disponibiliza o filme para projecções noutros locais. É só entrar em contacto com eles.
Caro e ilustre jornalista do “Lago”, a cadeira do “ditador” foi vista pelas 09:30 do dia 27 de Abril, junto aos contentores da Pastelaria Paraíso.. CARBONIZADA!